«DEMOCRACIA»... PALAVRA VAZIA DE SENTIDO?
Acontece com esta palavra, carregada de conteúdo político e ideológico, o mesmo que com muitas outras: liberdade, socialismo, justiça, igualdade...
As definições das palavras têm algo de arbitrário, num certo sentido, visto que resultam do costume de se utilizar uma dada palavra, num determinado sentido, numa dada sociedade e numa dada época.
- Pertencer a tal ou tal «pátria», nem sempre significou pertencer a «uma nação, a um estado».
O mesmo se pode dizer com muitos outros vocábulos: antes e nos primeiros decénios do século XX, a palavra comunismo teve muitos sentidos diferentes do que hoje em dia se classifica como tal (a versão marxista-leninista).
- Também, se eu pronunciar a palavra democracia, não se vai pensar que estou somente referindo o significado etimológico. Nem ninguém pensa que quero designar especificamente o sistema de governo praticado por gregos da antiguidade, a não ser que utilize uma expressão como «a democracia ateniense», ou algo equivalente...
A democracia moderna é resultante do século XIX, das diversas lutas pela emancipação dos povos em relação aos jugos imperiais ou monárquicos. Pesem embora as democracias europeias antigas e monárquicas, como a Grã-Bretanha, a Holanda ou a Suécia, o facto é que a democracia enquanto sistema de representação do povo, foi marcada pelos modelos republicanos da revolução americana e da revolução francesa. Ora, no contexto dessas revoluções, tratava-se de derrubar o poder da aristocracia, que tinha como cabeça o monarca e legitimar um sistema onde os cidadãos, colectivamente, eram os detentores da soberania. Mas, essa tal soberania - desde o início - foi proclamada e exercida «em nome do povo», por representantes eleitos do mesmo. O modo de eleição variou nos mais de dois séculos e só a partir do século vinte existiu um verdadeiro sufrágio universal.
No entanto, poucos foram os casos em que se registaram formas de governo directo, ou «democracia directa»; essas formas foram muito transitórias, na maior parte dos casos. Das poucas excepções, que se mantêm na actualidade, contam-se certos cantões (mini-repúblicas) da Confederação Helvética, em que as decisões são tomadas por voto de braço erguido, na praça pública, pelos cidadãos do respectivo cantão.
Hoje em dia, poucas pessoas defendem uma democracia directa, como método generalizado de governo, por oposição a um governo eleito directa ou indirectamente.
Quem tem objecções a essa forma de organização da sociedade pensa, em geral, que essa democracia directa tem de ser com grandes assembleias, em que centenas de pessoas votam, de braço alevantado, as diversas resoluções. Este tipo de assembleias acontece em circunstâncias muito especiais: por exemplo, numa assembleia de grevistas (que podem ser várias centenas), onde são tomadas, por este método, muitas decisões relativas à organização da greve. Mas, no dia-a-dia, não existiria possibilidade de realizar frequentemente tais assembleias, reunindo todo o povo.
Aparentemente, então, a democracia directa só poderia ser exercida em pequena escala ou, se numa escala maior, apenas em circunstâncias muito excepcionais.
Porém, tal não é o caso. A democracia directa pode ser exercida de forma constante e permanente, desde que se tenha em conta experiências passadas.
É certo que, historicamente, formas mais ou menos espontâneas de organização surgiram em contextos de luta acesa, de guerra civil, nalguns casos. Porém, isso não retira validade às mesmas. Nomeadamente, a experiência dos primeiros sovietes, durante a revolução russa de 1905 e o sindicalismo revolucionário, por volta do início do Século XX, até aos anos 30 do mesmo século.
Os sovietes, erguidos pelo movimento operário e sindical nos inícios da revolução de 1905, em São Petersburgo, Moscovo e noutros sítios, eram compostos de vários grupos participantes na insurreição. Neles, estavam presentes várias facções políticas e, também, operários agrupados em sindicatos ou em assembleias de fábrica.
Para garantir a continuidade e levar à prática as decisões tomadas nas sessões dos sovietes, eram mandatados delegados, que tinham um mandato preciso e imperativo. Eles eram eleitos para fazer determinada coisa, de determinada maneira. Os cargos eram - a qualquer momento - revogáveis pelas assembleias que os elegeram: ou seja, se houvesse alguém que - por qualquer motivo - não estava a desempenhar bem a tarefa incumbida, podia ser demitido e substituído por outro.
Este modelo de tomada de decisão era corrente na época nas associações operárias dos finais do século XIX, inícios do século XX e foi assumido por muitos sindicatos regidos pelos princípios do sindicalismo revolucionário. Os seus princípios foram consagrados na Carta de Amiens, no Congresso dos sindicatos da CGT francesa, em 1906. Esta poderosa corrente, em Portugal formou a CGT, em 1919, seguindo o mesmo princípio dos mandatos delimitados, imperativos e revogáveis como norma estatutária. Nenhum dirigente se podia arvorar em «ditador» dos restantes sindicalizados, visto que o controlo sobre a sua actuação repousava sempre nos seus camaradas, que o tinham eleito. Estes participavam realmente na vida interna do sindicato, a sua «associação de classe», na terminologia adoptada. A participação permanente dos associados na vida interna de uma estrutura é o que permite manter a sua democracia interna.
As mesmas regras de funcionamento podem aplicar-se em muitas outras instâncias, com as necessárias adaptações. Tem sido aplicada em várias ocasiões e em várias latitudes, em associações culturais, em assembleias populares, em associações de vizinhos, etc. Em todos os casos, a democracia interna tem de ser garantida pela participação regular dum conjunto vasto de associados, nas reuniões.
Quando se passa de um nível local, a um mais geral, haverá necessidade de órgãos coordenadores: para estes, as diversas assembleias mandatam (esta é a palavra-chave) alguém, ou um certo número de entre seus membros. Este mandato é, como referido acima, temporário, revogável a qualquer momento e deve incluir uma orientação concreta, da parte da assembleia que os elegeu, sobre qual o sentido do seu voto, ou a sua orientação.
Esta forma de projectar a vontade das assembleias de base, através de delegados devidamente mandatados, chama-se federalismo. [Não tem nada que ver com as estruturas estatais que assim se denominam, ou designações dadas por medíocres analistas políticos.]
O verdadeiro federalismo corresponde à aplicação da democracia directa, em vários patamares, onde os patamares de base elegem e controlam o modo como os eleitos exercem seus mandatos.
As resoluções duma estrutura federal são, em princípio, o resultado da confluência dos elementos federados. Numa assembleia federal ou confederal pode haver e é natural que existam, uma maioria e uma minoria, mas não de forma permanente, constante, o que seria equivalente a partidos parlamentares. Pois, numa verdadeira federação, os elementos das bases podem estar em contradição entre si, mas isso será temporário e não incidirá sobre todas as questões.
Num movimento democrático autêntico, não se evacuam ou reprimem as visões discordantes, elas são tidas em conta, sempre. Mas isso não implica nenhum consenso forçado. Alguns manipuladores têm recentemente tentado instaurar uma espécie de «religião do consenso», mas esta imposição do consenso é essencialmente estranha ao federalismo e à democracia directa.
Na democracia directa, existe maior liberdade de opinião e mais facilidade em manifestá-la, por muito minoritária que seja. É, aliás, uma das «pedras de toque» de uma tal organização, o respeito pelas minorias: o permitir, sem coação, a expressão de qualquer ponto de vista.
Penso que a democracia directa está ainda na sua infância, embora seja a forma mais natural e mais real de participação na «coisa pública».
Estou convencido que a questão da escala não é um problema: a democracia directa pode ser exercida de forma articulada com o federalismo autêntico, onde assembleias de base definem os mandatos e controlam os portadores desses mesmos mandatos.
Os sistemas ditos de «democracia representativa», não são representativos, verdadeiramente, nem são, de facto, democráticos. Invariavelmente, têm segregado novas oligarquias: os «representantes», uma vez eleitos, quase sempre «esquecem» os compromissos assumidos perante os eleitores.
Não nos pode surpreender que a democracia representativa esteja cada vez mais desacreditada. Perigosamente, tem desacreditado também a própria ideia de democracia, de participação política, de exercício da cidadania.
Tem-se perpetuado tal estado de coisas, pela passividade dos cidadãos, pelo alheamento de muitos, pela desistência em participar. Isso é desejado e promovido pelas «elites» que nos governam, embora, hipocritamente, digam o contrário. Os poderes querem reduzir a democracia a uma escolha de «representantes», de tantos em tantos anos; essa é a participação desejada por eles, mas afastam e mesmo reprimem, qualquer tentativa de participação na resolução directa dos problemas pelas pessoas.
Só uma retomada em mãos pelo povo, colectivamente, dos instrumentos de governação, poderá trazer maior democracia.
Neste século, com o aumento da cultura e do esclarecimento das pessoas, com a exigência maior de transparência, a democracia terá de evoluir.
Se, em vez de evoluir, a vida política se fossilizar ainda mais, a disjunção entre os princípios proclamados pelos Estados e as suas práticas, irá tornar-se muito patente, a governação será cada vez mais autoritária e isso irá catalisar transformações.
A democracia directa será, duma ou doutra forma, cada vez mais adoptada: primeiro, em pequena escala e depois, de modo generalizado.
texto do blogue: "Manuel Banet, ele próprio"
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