1. INTRODUÇÃO
“ (...) face à degenerescência da democracia actual, os homens ainda não conseguiram encontrar o equilíbrio , a organização ideal da sociedade que permita a expressão da vontade geral na feitura de leis e a participação voluntária dos cidadãos no processo político.
Por outro lado, subsiste a dúvida sobre a vontade e a capacidade do cidadão comum participar na vida política do seu país contribuindo para o processo de decisão. “
Sónia M. Pedro Sebastião , A Democracia Directa ainda interessa ? O Caso Suíço.
Lisboa: ISCSP, 2005, p.40.
Num estudo elaborado e traduzido em relatório pelo Economist Intelligence Unit –1 Democracy Index 2018 –, que mede a condição e qualidade das democracias no ano transacto (2017) em 167 países, Portugal ocupa o 33º lugar no ranking das democracias a nível global, situando-se no quadro das democracias imperfeitas (flawed democracies). Para além desta categoria, existem mais três tipos de regimes que definem o estado das democracias mundiais: democracias consolidadas ou plenas (full democracies ), regimes híbridos (hibrid regimes) e regimes autoritários (authoritarian regimes). Fazendo-se uma síntese analítica comparativa, facilmente entendemos que numa escala de 0 a 10, o nosso País apresenta uma pontuação geral de 7,79, valor aquém da Noruega, com 9,93, Suécia, 9,73,
Islândia, 9,58, respectivamente, os três primeiros desta lista de 24 países, integrados no conjunto das democracias consolidadas ou plenas. A nossa vizinha Espanha, posiciona-se neste grupo mas em 22º lugar com 8,05. Na nossa ordenação é curioso destacar Cabo Verde, dois lugares acima de Portugal – 31º –, com um índice geral de mais duas centésimas ou seja 7,81 e o Brasil, situado na 44ª posição, com valores gerais de 7,38. Turquia em 98 o lugar, com 5,12 de resultado médio, Venezuela, 100º com 4,95, Bósnia Herzegovina, 103º com 4,78 e Moçambique, 107º com 4,66, são quatro dos 39 países, integrados na categoria de regimes híbridos. Descendo ainda mais na tabela pela negativa, encontramos a classe dos regimes autoritários, a abranger 52 países. Exemplificamos quatro deles a saber:
– Rússia em 132º lugar, com 3,39 de pontuação geral;
– Angola, 133º, com 3,35;
– Guiné-Bissau, nono lugar a contar do fim ou seja 159º e com 1,93 de cotação geral;
– Coreia do Norte na última posição – 167º –, com a avaliação geral de 1,08.
Esta classificação está ainda dimensionada com cinco indicadores: Participação Política, Funcionamento/Comportamento do Governo, Cultura Política, Processo Eleitoral e Pluralismo e Liberdades Civis. Registe-se os respectivos valores para Portugal: 6,67, 6,43, 6,88, 9,58 e 9,41.
Cotejando Giddens, é emergente credibilizarmos e melhorarmos a democracia no âmbito desta Aldeia Global de espaços cada vez mais exíguos, dentro dos trâmites da tolerância e da diversidade cultural e étnica, companheiras eternas dos sistemas políticos democráticos, até porque “ (...), vivemos numa época em que a democracia está a estender-se a todo o mundo. A globalização está por detrás desta expansão da democracia. Ao mesmo tempo, e paradoxalmente, põe a nu os limites das estruturas democráticas que nos são mais familiares, nomeadamente as estruturas da democracia parlamentar. Temos de democratizar ainda mais as estruturas já existentes e de o fazer de forma a responder às exigências da era global “2
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O sistema político em Portugal, depara-se actualmente corroído por uma crise conjuntural de valores e princípios, consagrados na Constituição da República Portuguesa (CRP). Concernente com a problemática aqui exposta, sublinhe-se contudo que as sete revisões constitucionais – 1982,1989,1992,1997,2001,2004,2005 – da Lei Fundamental, ainda não conseguiram inverter as regras do tabuleiro jurídico do nosso Estado de Direito Democrático, e de apenas por exemplo, se acolher a iniciativa popular da proposta do referendo, com petição não obrigatória, sob a dependência do consentimento formal dos deputados eleitos por sufrágio directo e universal, num sistema eleitoral enlaçado ao método de escrutínio proporcional segundo a fórmula de Hondt , onde os votos são traduzidos em mandatos para o Parlamento da Assembleia da República e que, permite pequenos partidos terem possibilidade de ganhar representação parlamentar, num processo de eleições ditas competitivas e livres , a corresponder a um regime político onde predominam vários critérios de uma democraticidade a roçar o medíocre e onde as regras do jogo democrático são amiúde desrespeitadas, numa constante dinâmica do funcionamento do sistema político actual, liderado por uma nova classe de elites dirigentes, sob o cunho do respectivo directório partidário mas aquém dos reais interesses dos cidadãos/ãs .
Os mecanismos de democracia directa em Portugal, título principal deste ensaio e correlato à temática e problemáticas propostas, é também o seu objecto fundamental, o construído ou seja o objecto de estudo. Ele está consubstanciado à particularidade de uma reflexão crítica e analítica sobre o caso da Petição em 2009 que tinha por escopo a correcção ou mesmo a anulação jurídica do Acordo Ortográfico formalizado em 1990.
Exposto o objecto de estudo e à luz de uma perspectiva racional e analítica fundamentada, ao arrepio da emoção, do juízo de valor ou dos aforismos do senso comum, destinados ao julgamento de factos e pessoas, dentro de uma atitude não de distanciamento, submissão mas de análise crítica, este texto, tem como horizonte primeiro ou seja, como objectivo geral, o mais abrangente, procurar dar resposta à Pergunta de Partida, formulada e a saber:
– os mecanismos de democracia directa em Portugal são dentro da democracia representativa, nos termos da Constituição da República Portuguesa (CRP) e da Lei, instrumentos de democracia participativa, fora da lógica partidária, à disposição dos cidadãos ou acima de tudo, existem como ferramentas jurídicas de instrumentalização política sob o monopólio do Poder Político em Portugal?
Isto é, desconstruindo o objectivo geral e pegando em cinco momentos históricos da participação directa dos cidadãos a nível nacional no processo político da tomada de decisão, dando especial ênfase à Petição germinada em 2009 sobre o Acordo Ortográfico institucionalizado em 1990, este ensaio pretende:
– analisar o impacto geral que esta Iniciativa Legislativa Popular teve em Portugal, um acontecimento que na época, foi aludido por Vasco Graça Moura como o triunfo da petição;
– compreender em termos gerais se a acção desenvolvida na prática pelos partidos políticos com assento parlamentar em Portugal, muito em particular a sua classe política dirigente, potencia ou não o bloqueamento em Portugal dos mecanismos de democracia directa ao dispor dos cidadãos nacionais e por consequência, condiciona um dos seus exercícios de cidadania consignados na Lei Fundamental: a participação directa na tomada de decisão – Artigo 109º ( participação política dos cidadãos ) da CRP –3
Respeita-se deste modo o denominado método da pirâmide invertida, avançando e identificando a partir do geral, até chegar ao particular ou seja, a um breve e possível estudo de caso proposto e referido anteriormente. É o denominado método de “ (...) aproximações sucessivas, e que tem a particularidade de fornecer provas e contraprovas aos seus argumentos (...)“ 4
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A democracia directa como estrutura política, face à amplitude geográfica e física dos Estados contemporâneos, tem sido estudada excepcionalmente, trilhada por caminhos ínvios, atomizada de preconceitos e análises tendenciosas de instrumentalização política, factores correlatos à patente dificuldade em adquirir personalidades bibliográficas sobre a temática e a problemática propostas, existindo a imperiosa necessidade de constante análise e investigação de estudos e dados empíricos, transversais a diversas áreas do saber das ciências sociais já realizados, e, o recurso a fontes escassas e quão complexas de obter, sabendo-se também que em Portugal, a transposição dos mecanismos de democracia directa para o seu sistema jurídico e político, não tem tido na generalidade, muitos simpatizantes e admiradores, circunstância adversa, motivada quiçá, essencialmente pela falta de informação e de um eleitorado genericamente ainda pouco maduro, com limitada educação política, sabendo – se que o grau de alfabetização está directamente proporcional com a qualidade da contestação, informada e sustentada. Além disso é histórico o fraco associativismo dos portugueses em torno de relevantes decisões do País, algumas com características de desígnio nacional e onde o Estado, tem sido o pai e o castelo protector de uma população, na generalidade pouco interessada em assuntos políticos, salvo algumas excepções. São raízes advindas do período da fundação da nacionalidade. Continua por isso a fazer todo o sentido retomar hoje Eça de Queirós: “ A classe média vive do Estado. A velhice conta com ele como condição da sua vida. Logo desde os primeiros exames no liceu, a mocidade vê nele o seu repouso e a garantia da sua tranquilidade. (...) A própria indústria faz-se proteccionar pelo Estado e trabalha sobretudo em vista do Estado. A imprensa até certo ponto vive do Estado. A ciência depende do Estado. O Estado é a esperança das famílias pobres e das casas arruinadas; é a ocupação natural das mediocridades; é o usufruto da burguesia. Ora como o Estado, pobre, paga tão pobremente que ninguém se pode libertar da sua tutela para ir para a indústria ou para o comércio, esta situação perpetua-se de pais a filhos como uma fatalidade. “ 5 E relativamente ao desinteresse dos portugueses na participação directa e activa na vida política e nos processos de tomada de decisão do seu país, o ilustre académico Fernando Pereira Marques, lembra-nos que a permanente “ oscilação, quase esquizofrénica, entre um insuficiente individualismo e um excesso de anti-solidarismo, manifesta-se através de várias atitudes e práticas de resistências ao alargamento da esfera do público que condicionam o processo modernizador (...). Mas o que aqui interessa destacar, sejam quais forem os factores que para tal contribuam, é o incivismo, ou o anti-solidarismo, para retomar a expressão usada, que continua a marcar a vida colectiva dos portugueses. “ 6 Acresce a estas realidades, a circunstância de no sistema educativo nacional, ser débil ou quase nula a abordagem sobre este tema. Contudo, deve - se saudar o aparecimento da Unidade Curricular de Ciência Política no programa do ensino secundário, ainda que escasso e limitativo. Estas linhas de força, são alicerçadas no xadrez constitucional cujo tabuleiro, ainda pouco põem à disposição dos cidadãos, de modo a usufruírem de pleno direito, do exercício dos mecanismos de democracia directa em Portugal. Face ao que antecede, não será despropositado reflectir-se sobre a produção de uma nova Revisão Constitucional que garanta o absoluto exercício dos direitos de cidadania, nomeadamente no processo da tomada de decisão relativo às políticas quer públicas, quer económicas ou financeiras.
O registo deste ensaio, apresenta uma estrutura que para além desta Introdução ancora ainda dois Títulos, residindo no terceiro, a centralidade e o culminar desta recensão crítica e analítica, três subtítulos e encerra com as concernentes conclusões ou seja, o atar das pontas, a ideia explicitada, a súmula final, o voltar ou a resposta à Pergunta de Partida, enfim , o nosso ponto de destino.
António Carlos Dietrich Lopes
Sarg. Chefe no Exército Português
Mestre de Ciência Política
Sarg. Chefe no Exército Português
Mestre de Ciência Política
1 Democracy Index 2018. Democracy and its discontents. A Report from the Economist Intelligence Unit. London, The Economist, p.8
2 Giddens, Anthony (2012) – O Mundo na Era da Globalização . Lisboa : Editorial Presença , p. 18.
3 Canotilho , J.J.Gomes & Moreira, Vital (2008 ) – Constituição da República Portuguesa e Lei do Tribunal Constitucional –. 8a Edição, Coimbra : Coimbra Editora, pp. 75-76.
4 Bessa, António Marques (1993) – Quem Governa ? Uma Análise Histórico - Política do Tema da Elite. . Lisboa : ISCSP , p. 186.
5 Queirós, Eça de, (2004) – As Farpas ( coord de Maria Filomena Mónica) . Lisboa: Principia, pp.29-30.
6 Marques, Fernando Pereira, (2010) – Sobre as Causas do Atraso Nacional. Contributos para uma Arqueologia . Lisboa:
Coisas de Ler, pp.303-350.
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